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segunda-feira, 31 de maio de 2010

A gente se acostuma

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir mais as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender a luz mais cedo. E, à medida em que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão...
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado, porque está atrasado; tomar café correndo pois está na hora; a comer sanduíche, porque não dá para almoçar. A sair do trabalho, porque já é noite. A cochilar sentado, pois está cansado...cansado de se acostumar. E aí, a deitar cedo e dormir pesado, sem ter vivido o dia que acabou. Mais um dia. Menos um dia.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas, de ar-condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Ás bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. Ao barulho ensurdecedor. Às grades de nossa casa.
A gente se acostuma às coisas, demais, para não sofrer. Em doses homeopáticas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E, no fim de semana, vai dormir cedo de novo e ainda fica insatisfeito porque sempre tem o sono atrasado.
A gente se acostuma ao sofrimento, à opressão, à nossa própria desvalorização. Engordamos, envelhecemos, entristecemos...a gente se acostuma?
A gente se acostuma a ficar sentado esperando...um cliente, uma nova idéia, um motivo para sonhar, a vida...a gente se acostuma para poupar esta vida...que aos poucos se gasta de tanto acostumar...a gente se acostuma...mas não devia!
Temos que nos acostumar a não acostumar, a questionar, a pesquisar, a sensibilizar, a pensar...
Diz-se que, nos estágio atual de evolução da humanidade, somos velhos em termos racionais, adolescentes em termos emocionais e crianças em termos intuitivos.

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